Sentimento de cadáver insepulto

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Sentimento de cadáver insepulto

André Luís Luengo

Temos visto inúmeras cerimonias fúnebres nos últimos dias, marcadas pela
ínfima presença de pessoas, restritas apenas a alguns parentes, muitos deles
sequer sem tempo hábil para comparecer ao ritual de despedida. Isto vai de
encontro as nossas tradições para o sepultamento, gerando um desconforto e o
sentimento de que o cadáver ficou insepulto. Mas, tais exigências atendem as
determinações normativas criadas para regular a realidade gerada pela
pandemia da COVID-19 e que os órgãos de saúde pública tiveram que positivar
neste momento de crise (as orientações pós-óbito de pacientes com infecção
suspeita ou confirmada pelo novo coronavirus, bem como as recomendações
sobre o manejo de corpos no contexto do novo coronavírus COVID-19 –
publicada em 23/03/2020). Isso nos angustia pelo conflito entre as nossas
tradições, muitas delas religiosas e o poder humano, positivado pelo Estado. Na
literatura já houve uma abordagem a qual peço vênia para rapidamente lhes
comentar. Na sua obra “Antígone” o autor Sófocles, demonstra a desobediência
civil contra algo considerado como injusto. Na tragédia de “Antígona” (filha de
Édipo) Sófocles evidencia o conflito entre as tradições religiosas e o poder
humano. Os fatos acontecem com a morte de dois irmãos (Etéocles e Polinice)
filhos de Édipo. Os dois irmãos lutaram pelo poder e chegaram a um acordo de
revezamento no comando a cada ano. Porém, Etéocles, o primeiro a governar,
quando terminou o seu mandato, não quis ceder o lugar ao irmão Polinice. Este,
revoltado vai para a cidade vizinha e rival da grande Tebas. Reúne um exército
aliado e enfrenta o irmão buscando o trono. No final os dois se matam,
assumindo o poder o tio Creonte, irmão de Jocasta, esposa de Édipo. As duas
irmãs eram Antígona e Ismênia. Creonte estabeleceu que o corpo de Polinice
não receberia as honrarias tradicionais dos funerais, pois este tinha lutado contra
a pátria, determinando a pena de morte a quem desobedecesse às suas ordens.
Antígona entendendo que a decisão do Tio Creonte (rei) era arbitrária, pois
desrespeitava as leis naturais mais antigas ou divinas (diante da crença de que
os rituais de passagem eram importantes para que a alma não ficasse vagando
eternamente sem destino) preferiu correr o risco da morte e assim decidiu por
enterrar o seu irmão despojado. Ao ser descoberta que Antígona havia tentado
enterrar o seu irmão Polinice (ela fez apenas as honras fúnebres, ao que consta
não chegando a sepultá-lo), coube a ordem a Hemon, filho do rei Creonte e que
era o noivo dela (Antígona), para prendê-la e executá-la em nome da lei do
Estado. Segundo narrado ela se matou (enforcada na cela) ou foi morta por
Hemon, que depois se mata, mas não sem antes tentar golpear o seu próprio
pai. A mãe de Hemon ao saber disso, também se mata. Deste modo, na narração
dessa tragédia grega estava em conflito as leis divinas, encarnadas na religiosa
1 Delegado de Polícia. Professor da Academia de Polícia. Professor Universitário. Contato:
luengo.garra@hotmail.com
Antígona e as leis humanas determinadas pelo arbítrio de Creonte. Ela tornouse uma heroína dos valores, mas que não gozou de prêmio nenhum, até porque
considerando à época, ela era uma mulher, sem possibilidade de valorização.
Creonte, por sua ambição e por seu despotismo, perdeu seu filho e sua esposa.
Retornando para os dias atuais, a pandemia do novo coronavírus ceifou muitas
pessoas em decorrência da COVID-19, segundo os dados do Ministério da
Saúde. Nessas situações, os familiares dos mortos não podem velar os seus
entes queridos. Não podem sequer abrir o caixão onde os corpos são
acondicionados (há o kit pós-óbito para o correto acondicionamento do corpo).
As orientações preveem que os funerais dos pacientes confirmados ou suspeitos
não sejam realizados durante os períodos de isolamento social e quarentena. No
caso da realização da cerimônia, as funerárias são orientadas a manter as urnas
fechadas, de modo a evitar o contato com o corpo do falecido. A cerimônia
também deve ser realizada num curto espaço de tempo (geralmente de duas
horas) e em locais com ventilação, com no máximo com 10 pessoas, mantendo
o distanciamento. O protocolo ainda recomenda que se deve evitar a
permanência das pessoas que pertençam ao grupo de risco. Mas muitas das
vezes a ausência de um velório tradicional, pode não dar a certificação de que a
pessoa morreu. As experiências das grandes tragédias, como as de
Brumadinho, MG, geram essa dificuldade do luto. Isso faz com que nós, os
familiares, os amigos, fiquemos com a angustia de que não demos o devido
valor, o respeito aos mortos. Porém, embora a dificuldade e o sofrimento nesse
luto, temos que tentar compreender que essa ordenação normativa foi criada
para esta realidade e tem os seus fins e valores. Devemos pensar sobre a
responsabilidade de nossas ações no mundo. É difícil a última despedida, sem
a despedida e isto gera o sentimento do cadáver insepulto.